terça-feira, 19 de agosto de 2014

Êxtase em Cannes

Encarei a inexorável naturalidade do meu relacionamento com os filmes ganhadores de prêmios (sempre digo "por que ver?" e depois eu sempre vejo) e fui assistir à Palma de Ouro La vie d'Adele, vulgo Azul é a cor mais quente no Brasil (e em inglês). 

Adèle, garota francesa, adolescente, foi educada a planejar sua vida, profissional e amorosa. Vemos muito cedo que ela investe em ser educadora de crianças, conforme planeja desde a adolescência. Já pelo lado do coração, sua presumida "racionalidade" não a deixa seguir o caminho conforme o preestabelecido. Desde as primeiras experiências, ela repara que não existe paixão, nem sequer uma mínima emoção, ao fazer sexo, ou simplesmente sair e conversar, com um garoto da escola atraído por ela, nem com os demais.

Seu encontro, antes casual, depois planejado, com Emma, garota mais madura, lésbica publicamente assumida, a leva a expectorar aquela paixão latente. O que nos atrai da história é essa paixão sublimada, perpetrada, animal; uma paixão que, mesmo sendo sustentada pelo carinho constante de uma para a outra, transponde a relação amorosa das garotas para a perdição pura e total. As duas se mordem, se sentem, viram uma a continuação da outra, como se aquela fosse a última vez que se tocam. E, ironicamente, as últimas vezes que estão juntas, tudo fica mais frio, e nem o direito a um adeus carinhoso e sonhador é dado a Adèle, quando Emma descobre que a distância tomou conta do espaço entre as duas. Adèle implora por uma reproximação, quase nos faz acreditar que está contemplando o suicídio, mas no fim vemos que sua única solução é a aceitação e uma vida solitária.

Falar de todas as críticas que o filme recebeu não cabe aqui, são muitas mesmos, e claramente quebradas entre quem amou e quem odiou a película. Eu faço parte do grupo que achou o filme super interessante, porem sem merecer espaço na estante nobre da minha videoteca. Mas preciso dizer que não concordo muito em estigmatizar o diretor Kechiche dizendo que foi sádico e que foi desnecessário ter insistido em cenas intermináveis de sexo, pois, se pararmos para refletir sapientemente, podemos enxergar que o fio condutor, a alma do filme, o centro de gravitação das relações é a luxuria, é a doce perdição da carne. E é tudo isso que Kechiche quer passar através de sua suada (sobretudo pelas atrizes) película. Ele é um perfeccionista e sabe atrás quais meios precisa recorrer para ter um trabalho bem feito. O que eu vi me convenceu muito. Adèle e Emma (Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux) explodem de prazer e é exatamente isso que o diretor quer mostrar. A boca onipresente de Adèle, quando come qualquer coisa, quando se suja, quando sorri, quando dorme e respira profundamente, quando beija Emma, é objeto obsessivo de closes de Abdel Kechiche. Muito boa escolha, aliás. Sim, a intenção de Kechiche é de nos excitar e de nos mostrar o lado físico da história das duas, de nos deixar incomodados quando, por longos minutos, vemos apaixonadíssimas cenas de sexo; mas somente porque na hora do cinema estamos próximos a alguém. As atrizes também, não pouparam críticas às filmagens dizendo que Kechiche é um sádico (me lembra muito quando os atores nos bastidores de Shining disseram do Kubrick que era um maníaco, que repetia a cena da porta do banheiro só por sadismo). Óbvio é que, depois da Palma de Ouro, (pelo menos) as atrizes trocaram o adjetivo "sádico" pelo substantivo "génio" e sorridentes abraçaram o diretor que lhe deu essa cobiçada estatueta.
A boca de Adèle: êstase, sono, fome, alegria.

Em poucas, e últimas, palavras, diria que o filme não é único e imperdível, mas ele consegue desencadear uma série de emoções reprimidas, latentes no substrato animal que jaz em cada um de nós, heterossexuais, homossexuais, tímidos, extrovertidos, homens ou mulheres, e isso não é fácil de esquecer.